LITERATURA RESENHAS

MEMÓRIAS DO BADALADO 15+2

Lê-se em início de Nota Introdutória: “No dia 03 de Março de 2016, iniciei este relato num antigo e pequeno tablet. Digo isto para destacar o facto de nao ter, sequer, um computador em casa, porque o nosso material informático permanecia com o Serviço de Investigaçao Criminal (SIC) e a Procuradoria-Geral da República (PGR).
Esforçava-me para levar a cabo a decisão de começar a escrever o relato que agora o leitor tem em mãos. Chamo-lhe relato porque é, simplesmente, isso – um relato – e nada mais. Também destaco a data, para que facilmente se perceba o estado emocional em que tudo ocorreu – desde a nossa prisão, a 20 de Junho de 2015.”

Ahhhhhh.. Aqui sentimos um grande alívio. Afinal, sabemos quantas histórias no nosso país, ficam mal contadas: Ou porque são “catanadas” e assim, ficam mutiladas, ou porque acrescentam-se tantos pontos que a tornam ou problemáticas, ou conhecem-se heróis sem coragem.
Com o relato de Luaty Beirao em “Sou Eu Mais Livre, Então”, e desta vez com o “Prisão Política” de Sedrick de Carvalho, lançado em Abril de 2022, temos certeza de que o problema de histórias mal contadas e a questão da falta de referências, não será um problema quando se tratar do cárcere que viveu o grupo 15+2, no fatídico 2015, em Luanda, por se ter atrevido a olhar analíticamente para o desabençoado livro “From Dictatorship to Democracy” (“Da ditadura à Democracia”).

 

Por: JÚLIA MBUMBA

 

Na primeira pessoa e como detalha, sem embelezamentos e nem acréscimos, Sedrick de Carvalho, um dos activistas pertencentes ao processo “15+2”, conta o mártere passado por si e pelos seus companheiros, em “Prisão Política”.
Os dezassete activistas angolanos foram julgados no Tribunal Provincial de Luanda, acusados de prepararem um golpe de Estado contra o Governo ainda no poder, na altura chefiado por José Eduardo dos Santos.

Um grupo de jovens detido no decorrer de uma habitual reunião feita pelos mesmos, que servia para discutir política e alternativas de governação.
Sedrick de Carvalho, que mesmo achando que a oposição podia ter feito mais, considera que até certo ponto ajudou quando pediu “#LIBERDADEJA”. Importante referir que este processo, colocou a defesa dos direitos humanos em Angola nos holofotes internacionais, e que muito do que se fez, foi por organismos internacionais que se juntaram à causa, para que os jovens fossem libertos.
Segundo o autor, “o real registo de que 15 jovens e duas jovens foram detidos, julgados e condenados injustamente num processo político é importante para que não haja deturpação da história no futuro, para que sirva de fonte de pesquisas sobre o processo e para que se perceba como o poder político utilizou o poder judicial. Mas sobretudo para que se saiba que resistimos.”

A obra literária é dividida por momentos marcantes dessa prisão, nomeadamente o momento de detenção e os dias de esquadra, o campo de concentração de Calomboloca, os dias passados no Hospital-Prisão de São Paulo, o Tribunal por eles considerado Tribunal da palhaçada, a prisão domiciliária e as temporadas, Kaboxa – Viana – Kakila e de Kakila ao TIR (lugares em que estiveram alojados durante o calabouço), Liberdade: A concessão suprema, a caminhada e momentos reais de sobrevivência.
Alguns anexos são parte desse livro, que quis tornar evidentes algumas provas.
O real registo de pontos marcantes vividos pelos dezassete activistas durante o fatídico período de um ano, sensivelmente, é considerado por estes como sendo uma gigantesca operação, fortemente armada. O autor de “Prisão Política, conta ainda que “o número de agentes e equipamentos usados era assustador, como revelo no livro. Destaco as greves de fome como segundo episódio. Foram momentos desgastantes, desesperantes e de incertezas. Os riscos de morte deixavam-nos angustiados”, lembra.

Sedrick, registou um momento ímpar da história da sua geração mas, mostra-se muito mais preocupado, principalmente por constatar que nessa altura, na sua Angola democrática e de direito, “continuamos a assistir à morte de manifestantes. Cenário que comprova que o activismo crítico continua no mesmo estado que há seis anos atrás.

Dois jovens leitores, que têm em sua posse o “Prisão Política”, falam desapontados sobre o que conseguiram reter dele:
“O livro comprova que para além do nosso Sistema judicial ser uma vergonha em teoria, na prática é ainda pior. Não se respeitam os direitos humanos. A cadeia é um lugar de reabilitação social acima de tudo. O principal é as pessoas lá estarem e cumprirem as suas penas e perceberem que tudo é consequência dos seus actos e terem oportunidade de se reabilitarem. Mas acontece exactamente o cobntrário, e como nos mostra o livro, até com pessoas inocentes. Sãao tratados desumanamente e sem chances de se rever”, reflectiu a psicóloga Elsa Eduarda.

“Não tinha ideia de que jovens dessa geração passaram por tudo isso. Em pleno século 21, num ano de 2015, é incrível ler como estes jovens sofreram não apenas durante o tempo em que estiveram presos e a responder em Tribunal. O Sedrick mesmo, fala nos agradecimentos, que a ferida é grande. Por isso estou sempre a dizer: ou somos radicais, ou Angola não vai deixar de ser essa vergonha para a nossa juventude”, realçou o jovem estudante de Comunicação Social Mário André.

Por sua vez, Sedrick de Carvalho, traz nas páginas 155 e 156 da obra uma carta ora escrita para a sociedade que comove qualquer jovem da sua geração que luta e/ou torce para ver uma Angola mais igualitária e democrática.
Escrita um dia antes da condenação, a 27 de Março de 2016, encontrando-se ele num estado de espírito sereno, concluíndo que não havia outra opção que não a condenação.

Ei-la aqui transcrita:

ÀS MASMORRAS DA DITADURA HAVEMOS DE VOLTAR

Sou Sedrick de Carvalho (…). E estão a ler esta nota porque certamente já estou de regresso aos calabouços da DITADURA.
No dia 3 de Julho, ouvi o Presidente da República, José Eduardo dos Santos, comparar-nos com os cidadãos mortos no dia 27 de Maio de 1977, ou seja, dizendo que somos semelhantes a Nito Alves, José Van-Dúnem e tantos outros barbaramente assassinados, pois “não ]queriam] perder tempo com julgamentos”, na altura.
Naquele dia, percebi que estávamos condenados, ou mortos até. Imaginava que nunca mais veria a minha família. Mas, então, a sociedade angolana e a comunidade internacional mobilizaram-se e exigiram a nossa libertação incondicional. Protestos múltiplos aconteceram e ainda hoje mesmo estão a acontecer cá, em Angola, em Portugal e em outros países, depois de, em Moçambique, ter ocorrido na quinta-feira um concerto com mais de 30 artistas, denominado “Liberdade para os presos políticos de Angola”.
A exigência surtiu efeito. Voltamos às nossas casas. Continuávamos presos, mas em casa, pelo menos. Três meses se passaram. Três meses com a família. Aproveitei ao máximo. Foi muito bom!
Infelizmente, estamos de volta às masmorras. E só estamos porque o Presidente da República não iria admitir o contrário, depois de ter aberto o peito e a boca para nos comparar com os assassinados em 77.
É muito simples. Desde o pronunciamento sobre a nossa prisão estúpida, ilegal e injusta que os procuradores e juízes (que não valem muita coisa) se viram perante uma tarefa hercúlea de satisfazer o discurso de JES. Coitado do juíz Januário, que tanto se esforçou para nos condenar e agradar ao Chefe. Coitada da procuradora, que até teve de se disfarçar com uma peruca, só porque tinha de agradar ao seu Chefe. E conseguiram. Por isso, voltámos. Mas eles são também tão criminosos quanto quem os manda. Mas não quero alongar-me aqui.
Quer sim, agradecer a todos aqueles que gritaram alto “Liberdade Já”. Muito obrigado!
Regressamos às cadeias conscientes de que, para os povos serem libertados e usufruírem a liberdade, é necessário estarmos dispostos a enfrentar o ditador e a ditadura, o corrupto e a corrupção, nem que tenhamos como consequências o que estamos a viver agora. A história dos povos desenvolvidos está recheada de pessoas como nós. É só pensarmos que muitos angolanos foram presos para libertar Angola do colonialismo. Agora é o momento de sermos presos para libertar Angola da DITADURA.
Ao terminar, encorajo as angolanas e angolanos a ir à busca da LIBERDADE. Essa não será dada, mas conquistada. Lembremo-nos sempre de que a SOBERANIA pertence ao POVO. Mostremos que somos donos da SOBERANIA!
OBRIGADO PELO APOIO!

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